quinta-feira, 27 de outubro de 2011

A capacidade de se fazer compreender comicamente



O espetáculo que traz por título: “Quem disse que Inês é morta?!”, com texto e interpretação da atriz Zuzu Abuh, e direção de Fábio Saltini, é uma peça rica de propostas. Com mensagens variadas entre o dramático e a comicidade, uma única atuante, incorpora no palco diversas personagens com algum tipo de referência a história de Inês. Esta é a principal personagem do espetáculo. Uma dama espanhola, da Idade Média, mais precisamente século XIV, que foi assassinada a mando do rei Afonso IV, por ter consumado um romance proibido, para as conveniências monárquicas da época, com o futuro rei D. Pedro I de Portugal.

Uma história trágica que abrange amor, poder, adultério e morte. Todavia, pela forma como as temáticas da vida de Inês são reproduzidas é impossível a presença do sentimento melancólico. Existe a intercalação de personagens como: a dançarina (um misto do estilo funk com o oriental), uma cantora européia, um eletricista, uma faxineira engraçada e uma pseudo mística. Todas interpretadas por Zuzu. As figuras do drama, quando informam, simultaneamente, encantam a platéia com a pertinência das abordagens e surpreendente criatividade, ao possibilitarem diferentes visões dos fatos, que variam do banal ao pseudo transcendental. Pode-se perceber o traquejo para falar do trágico sem se despojar do espírito de diversão.

Trabalha-se o passado comparando com o presente, e procurando contextualizá-lo com situações verossímeis da vida pregressa de outros atores sociais. Quando a dançarina afirma que fez regressão e descobriu que na outra vida fora a rainha Cleópatra, uma mulher de muitos amantes, ela desmonta o mito da integridade feminina do mundo antigo, e busca apoio na historia para justificar a permissividade vivenciada na atualidade. Também, ao falar de uma amiga que na outra vida fora Inês de Castro, a amante do futuro rei, se promove a absolvição dos delitos da presente reencarnação.

Quando se pensa a concepção do histórico dissociado da comédia, geralmente se vislumbra a possibilidade de resgatar e esclarecer os fatos, evidenciando a fiabilidade da narrativa. Mas, a leitura da retratação de um acontecimento que não se despoja do humor, alcança o equilíbrio primordial para um trabalho artístico de qualidade e persuasivo.

Toda a trajetória de Inês é apresentada aos espectadores, entrecortada por personagens extremamente cômicos, que de maneira explicita ao sutil, reportam a platéia à existência indestrutível da senhora Castro. A habilidade perceptível com que se investiga e ilustra um percurso humano traspassado de conturbação, é intensa e revestida de suntuosidade.

As mensagens são emitidas no transcorrer do espetáculo com absoluta contundência e primor, e o fundamental é que o espírito de Inês em sua força, harmonia e aura da vida enquanto matéria se apossa não só da atriz, mas de todos que conseguem acompanhar de perto os relatos e interagir profundamente com a intérprete e sua Estrela.

A eternidade e inegabilidade da essência da dama espanhola possibilitam a introspecção acompanhada de profícua análise do homem, no sentido de cogitar e efetuar o resgate do Eu Supremo. Que é imorrível, supera o ultraje, o tempo e as densas trevas.

A valorização do Ser, nas circunstâncias proporcionadas pela peça, interposto nos meandros de estratos sociais tão díspares, além da utilização da comicidade intelectualizada e trabalhada por intermédio do recurso multiforme, é um dos temas de maior relevância na apresentação performativa.

O Ser é apresentado enquanto humano, transgressor, cúmplice, não-existência, eterno, desmerecido, perdurável. Enfim, ele é visto na sua inteireza de virtudes e imperfeições.

A grande dama Inês de Castro, enquanto protagonista de sua própria história, foi mulher, mãe, amante, esposa, realizada, infeliz, morta. Na qualidade de Ser em total existência infinita, é eterna, rainha dos portugueses, sobretudo de si mesma, soberana como vida diversificada e identificável, e sempre presente de forma interpessoal nos distintos tipos de ralações humanas e espiritualizadas.

Desta forma, aquela que se tornou rainha de Portugal, mesmo depois de morta, conquista a perpetuação, como a mulher que se transforma em heroína, sobrepujando seus próprios conflitos e morte, para comunicar aos interlocutores a grandeza da vida, mediante o enfrentamento da execução como ser humano e eternização enquanto pessoa iluminada.





Utilidade Pública:

Teatro da Livraria da Vila – Shopping Pátio Higienópolis

Sábado às 20h

Domingo ás 18h

Dias 29 e 30 de outubro.

domingo, 2 de outubro de 2011

Cultura Popular



A pronúncia do termo cultura popular em um primeiro momento já remete o interlocutor a uma espécie de cultura do povo, feita pelo povo e para o povo. De acordo com o escritor e professor de Antropologia Antonio Augusto Arantes (ARANTES, 1983), geralmente se pensa em algo de somenos importância, pelo menos do ponto de vista da elite social, partindo-se do princípio que, se procede do povo, ou seja, da massa social, não serve para a nata social que é a classe elitista. Mesmo porque nas sociedades capitalistas as coisas acontecem em um sentido inverso.
A moda, as gestualidades, os gostos alimentares, enfim, todos os produtos fabricados pela grande indústria da cultura, partem da elite para a população. Sendo assim, a cultura popular fica subentendida como cultura do “povão”, cultura inferior, simplória, cujo efeito só pode ser evidenciado no povo por causa das limitações dos fabricantes e a subseqüente qualidade restrita ou praticamente inexistente dessa cultura representada nos seus produtos e rituais.
Segundo (ARANTES, 1983), o termo cultura popular abarca uma infinidade de conceitos e concepções que vão desde a negação de que os fatos identificados nela contenham alguma forma de saber até a concepção dela como uma forma de resistência à dominação social pela classe favorecida.
Pode-se notar dois pontos de vista: de um lado um grupo de pessoas acredita não existir saber na cultura popular, para eles existe o fazer despojado da intelectualidade. Acreditam que esse tipo de cultura não traz nenhum verdadeiro enriquecimento cultural. Por outro lado, existe um grupo de pessoas que vêem na cultura popular até mesmo uma forma de contestação à dominação de classe. Percebem nessa cultura uma manifestação clara de reivindicação de direitos sociais que não são usufruídos pela classe dominada e desfavorecida. Desta forma, o próprio povo promove a cultura popular para não ser simplesmente povo, mas, acima de tudo, se estabelecerem na condição de cidadãos, com todos os seus direitos constitucionais garantidos.
Dentro do conceito de cultura popular também existem mais dois pólos muito pertinentes à análise: O primeiro refere-se a aspectos da tecnologia que abarcam técnicas de trabalho, procedimentos de cura e conhecimento do universo. Esse pólo está intrinsecamente respaldado no conceito de cultura proferido pelos antropólogos que compreendem a cultura como todas as ações e valores do homem dentro de uma determinada sociedade, com suas formas características de trabalho, conduta, e práticas naturais ou espirituais de cura, maneiras de entender o universo, crenças e conceitos gerais referentes à religião.
O segundo pólo enfatiza as formas artísticas de expressão como literatura oral, música, teatro, etc.; sendo que os componentes do primeiro grupo pensam a cultura popular como algo pertinente ao passado, que está em progressivo estado de aniquilamento, enquanto que, os componentes do segundo pólo compreendem a cultura popular como algo voltado para o futuro e, chegam a percebê-la como mantenedora de fragmentos de uma nova forma de sociedade a ser implantada.
A cultura popular, na verdade, retrata a história do povo que a promove, mas a nomenclatura “popular” é que causa um enorme preconceito por parte dos intelectuais. Entretanto, até mesmo a classe dominante se utilizada dessa cultura, pois ao falar de um país, ainda que não se queira, trata-se de pontos ligados às raízes da nação, aqui reside preponderantemente a cultura popular. Todavia, a elite ao se utilizar de fragmentos dela procura “maquiá-los” com o objetivo de tirar-lhes o efeito ou semelhança da pobreza.
Incorre-se a um erro com a efetuação de mudanças nas apresentações ditas da cultura popular porque, devido ao preconceito, primeiro a riqueza histórica lhe é tirada, depois, as encenações culturais não retratam a cultura com a grandeza que poderiam fazê-lo, se procurassem ao invés de focar essencialmente nos recursos técnicos, primar acima de tudo pela originalidade.
Arantes (1983) cita elementos que os brasileiros em geral consomem, mesmo tendo sido orientados a cultivar somente as práticas consideradas civilizadas ou cultas. Menciona, por exemplo, o samba, frevo, maracatu, vatapá, tutu de feijão e cuscuz. Seresta, repente e folheto de cordel. Congada, reisado, bumba-meu-boi, boneca de pano, talha, carnaval e procissão.
Alguns elementos são vistos em uma região outros em outra, com sotaque de pessoas de várias origens que adotam quando chegam ao Brasil, como italiano, chinês, japonês, alemão, árabe ou estadunidense ou ainda de uma forma sutil, cuja idéia do reprodutor fora higienizar a cultura despojando-a de características rústicas, reconhecidas como pobres e inadequadas.
Nessa higienização existe uma manifestação da busca pela apresentação de uma cultura que não seja popular. Os produtores, ou melhor, reprodutores da cultura popular que nos grandes palcos procuram retratar as formas de vida, as atividades costumeiras e elementares da sociedade desde os seus primórdios, na tentativa de “aperfeiçoar” a cultura, acabam apresentando-a de maneira adulterada que na verdade não retrata as autênticas formas culturais inerentes ao povo. Eles talvez não saibam que um objetivo que deveria ser primordial não foi cumprido, o de retratar a cultura popular com autenticidade, despida da higienização.
A cultura popular se traduz como o povo se auto-retratando. Apresentando à sociedade ou ao meio específico no qual vive à sua comunidade, região, arraial, uma visão panorâmica de sua condição como participante da história.
Arantes (1983) afirma que se apoderando de características, de rituais e práticas consideradas populares, as sociedades, inclusive, a brasileira, se expressam simbolicamente enquanto nação, mas, por causa do preconceito inerente aos mentores das apresentações, os perfis e desigualdades regionais não são apontados. Elementos que seriam de uma utilidade preponderante, pois, retratariam com veracidade o cotidiano dos grupos que “se pretende” mostrar.
Sem o efeito da indústria cultural, não se teria a possibilidade de escamotear as disparidades tão extensas da população brasileira. O que aconteceria se ao invés de os manipuladores apresentarem uma cultura popular deformada, condicionada aos seus interesses ideológicos, retratassem com autenticidade?
Pode-se acreditar que a tendência seria a cada oportunidade que se tentasse apresentá-la, mostrá-la cada vez mais enriquecida, não pelos recursos orquestrados pela intenção dos mentores da indústria cultural, mas, pelo contrário, ela seria apresentada de forma enriquecida pelas novas características do povo que estaria sendo retratado. Não mais descapitalizado, desvalorizado e vítima de ações preconceituosas, mas tratado com total dignidade e respeito e que, pelo fato de ter passado a ter acesso aos direitos pertinentes a todos os cidadãos, não pode ser retratado de outra forma senão, de forma primorosa, pois o primor é sua característica nata, sem o uso de nenhum engenho tecnológico.
Os teóricos revolucionários pensaram a formação de sociedades ricas preponderantemente no aspecto cultural, eles cultivavam um olhar sobre a sociedade que projetavam teoricamente, respaldados na indispensável justiça social e priorização da cultura por todos os agentes sociais mediante o conhecimento e as práticas intelectuais genuinamente concebidas e consolidadas.